Tonico e Tinoco
Quando o Brasil dormia com as galinhas e acordava a canto de galo, o caipira
acreditava em pelo menos duas receitas infalíveis: uma boa benzedeira era tiro
e queda para curar os males do corpo; para tratar as mazelas do espírito, bastava
ouvir no rádio uma sentida toada ou moda de viola, paliativo garantido para a dor
de cotovelo. Das duas receitas, uma resistiu por décadas: a penicilina e o antibiótico
aposentaram as rezas, mas a música sertaneja - embora sobrem poucos caipiras neste
Brasil super urbanizado - curiosamente está ocupando um enorme espaço como alívio
das mais eficazes para os males da alma. Neste mês de agosto, os irmãos João Salvador
e José Perez - paulistas de São Manoel e Botucatu - ou simplesmente Tonico e Tinoco,
cujo empenho sustentou essa música, nos altos e baixos, completam 56 anos de estrada.
Em meio século testemunharam cada dia da História contemporânea brasileira e fizeram
a história da música sertaneja.
Continuam hoje com a mesma disposição do início.
Aos 74 e 70 anos de idade, ambos têm o mesmo brilho nos olhos que se acendeu na
década de 30, quando ainda eram simples colonos trabalhadores braçais na região
paulista de Botucatu. Foi ali que os irmãos começaram a mudar as mãos da cata do
café aos braços da viola e do violão. Nessa transição, montaram nos a década de 30,
80% da população brasileira ainda vivia no campo e as famílias dos trabalhadores,
como os Perez, sobreviviam, reproduziam-se nas colônias de café e de quebra forneciam
uma safra infindável de violeiros. O destino da futura dupla estava traçado. Em 1931,
Tonico com 13 e Tinoco com 10 anos de idade moravam em Botucatu (SP), na fazenda
Vargem Grande, de Petraca Bacci, com os pais, Salvador Perez - um espanhol de Léon,
na Astúrias espanhola, chegado ao Brasil criança, em 1892 e Maria do Carmo, uma
brasileira descendente de negros com bugres. A exemplo de outras crianças da época,
os dois garotos, mal aprenderam a falar, já eram cantadores das modas de viola.
Aprendiam as letras com Virgílio
de Souza, violeiro das redondezas.
A crise econômica mundial de 1929, detonada com o "cracle" da Bolsa de Nova
Iorque e irradiada para o Brasil, fez a família Perez pular de fazenda em fazenda
a procura de dias melhores. Foi numa dessas fazendas, de propriedade de Deca de
Barros, da família de Ademar de Barros - governador de São Paulo nos anos 60 -
que Tonico comprou a primeira viola, feita a canivete. Primogênito dos Perez,
Tonico trabalhava na roça durante o dia e à noite virava professor na escola rural.
Adolescente, tinha só o segundo ano primário, mas era considerado um mestre num mundo
de analfabetos. Ensinava para uma turma de 80 moças e rapazes, alunos dedicados no
aprendizado das quatro operações aritméticas, do be-a-bá e a escrever cartas.
O professor recebia como pagamento 500 mil réis mensais e um litro de querosene
para lamparina: Economizou o dinheiro e comprou a viola. Tempos depois, surge o
conjunto Deca de Barros: Tonico na viola, Tinoco no cavaquinho, Chiquinho -
o irmão caçula - no reco-reco, o primo Miguel na sanfona, Teixeira no pandeiro
e Manolo na violinha.
Naqueles anos 30 só existiam 65 emissoras de rádio e 30 mi1 aparelhos de
receptores
em todo o país, para uma população de 35 milhões de pessoas. Como não havia rádio
na região, o conjunto ficou famoso. Mas Tonico e Tinoco só cantavam em dupla nas
horas vagas ou nas folgas a, o trabalho dos bailes, quando a turma parava para tomar
café. Cantavam a moda de viola, Jorginho do Sertão - um autor imaginário, que
utilizavam para assinar suas canções -, que falava da crise no país com as revoluções
de 1930 e 1932. "A crise bateu aqui na nossa porta. Fazendeiro grita e os colonos
berra. A vida do pobre é uma judiação, come com gordura e lava com sabão." A música
caipira não só abordava a crise financeira provocada pela queda das cotações do café,
mas refletia também o atraso do país, o medo das doenças. A tuberculose contaminava
meio milhão e matava umas 100 mil pessoas anualmente. O povo tinha pavor da difteria,
da paralisia infantil, da varíola
e da sífilis.
Os que sobreviviam não se abatiam e continuavam naquela vida pequena. Tonico e
Tinoco
participavam das primeiras serenatas, alegravam festas e bailes de São João. Nas
colônias enfeitadas de bandeirinhas, comiam batata-doce assada na brasa, pamonha,
milho verde e bebiam quentão. "Os rapazes trabalhavam o ano inteiro para fazer bonito
nos bailes, junto As Caboclinhas", conta Tinoco. "NÓS la de calça cumprida, camisa
xadrez e as botas penduradas nas costas para não estragar o solado. As meninas com
seus vestidos de chita dançavam de pés descalços e com uma flor no cabelo cheirando
a gostosa." A esperança dos moços e das moças era arrumar um namoro. Foi num desses
bailes que Tonico conheceu e apaixonou se por Zula, filha do administrador da fazenda,
Antônio Vani. O pai proibiu o
namoro. Magoado, Tonico compôs Cabocla.
No fim do ano agrícola de 1937, os Perez decidiram, com outras famílias,
tentar
a vida na cidade de Sorocaba (SP). As irmãs Carmem, Rosalina e Aparecida foram
trabalhar na fábrica de tecidos Santa Maria. Tonico foi ser servente na Pedreira
Santa Helena, fábrica do cimento Votorantim. Tinoco, menos chegado ao trabalho duro,
virou engraxate na Estação Sorocabana, e Chiquinho engajo-se na construção da Rodovia
Raposo Tavares, que liga o sul de São Paulo ao Mato Grosso do Sul. A crise econômica
do país chega ao auge. Getúlio Vargas implanta a ditadura do Estado Novo. Adolf Hitler
invade e ocupa a Tchecoslováquia
e depois a Polônia. Começa a Segunda Guerra Mundial.
A vida em Sorocaba fica insuportável, nada dá certo para os Perez e eles decidem
retornar ao campo. Agora para a fazenda São João Sintra, em São Manoel (SP). A volta,
contudo, possibilitou aos irmãos Perez a primeira chance de cantar numa Rádio.
O administrador da fazenda, José Augusto Barros, levou-os para cantar na rádio
Clube de São Manoel - ainda hoje lá, na rua Coronel Rodrigues Alves, no centro
da cidade. Assim, até o final de 1940, eles ficam trabalhando na roça durante a
semana e aos domingos cantam na emissora da cidade. Só por amor à arte, sem ganhar.
As dificuldades levaram os Perez a uma derradeira migração. Em janeiro de 1941
chegam, de mala e cuia - quatro sacos com os trens de cozinha e duas trouxas de roupa
- a São Paulo. À falta de profissão, as meninas foram trabalhar em casa de família,
Tinoco num depósito de ferro-velho, Chiquinho na metalúrgica São Nicolau e Tonico,
sem outra alternativa, comprou uma enxada e foi ser diarista nas chácaras do bairro
de Santo Amaro. Os tempos duros da cidade grande tinham lá sua compensação,
principalmente nos domingos, quando a família ia ao circo, na rua Lins de Vasconcelos
no então pacato bairro do Cambuci. Num desses espetáculos, os manos conheceram
pessoalmente Raul Torres e Florêncio, a dupla de violeiros mais famosa de São Paulo.
Depois conheceram Teddy Vieira - um paulista de Itapetininga que produziu um formidável
acervo de 500 músicas sertanejas da melhor qualidade -, Palmeira e Piraci, Zé Carreiro e
Carreirinho, artistas exclusivos da rádio Record do doutor Paulo Machado de Carvalho,
que seria chamado "Marechal da Vitória" quando chefiou as seleções brasileiras de
futebol campeãs do mundo em 1958 e 19ó2. Já existiam no país 76 emissoras de rádio e mais
de 1,5 milhão de aparelhos receptores. Era ao redor desses aparelhos que o país todo se
debruçava para acompanhar nervosamente o noticiário
da guerra pelo Repórter Esso.
Anunciado como "testemunha ocular da História", esse noticioso foi o primeiro
radiojornal a utilizar técnicas modernas no país e era transmitido pelas rádios
Nacional (Rio) e Record (São
Paulo).
No difícil ano de 1942 (o Brasil declarou guerra à Alemanha a 22 de agosto), os
ventos sopram favoravelmente para os irmãos Perez. Eles inscreveram-se no concurso
do programa "Arraial da Curva Torta", da Rádio Difusora, onde apresentaram-se
acompanhados pelo primo Miguel, com o nome Trio da Roça para cantar Tudo tem no
sertão, de Tonico. Classificados, foram início da disputar a finai do concurso,
profissio em 15 de novembro, escolhendo a música Adeus Campina da Serra, de Raul
Torres e Cornélio Pires.
(Esse último um radialista e pesquisador que foi pioneiro no estudo da vida
sertaneja, especialmente a paulista, e que deixou uma extensa obra a respeito.)
Quando terminaram, o auditório aplaudiu de pé, em meio a lágrimas. Todos pediam
bis àquela dupla que cantava diferente, com afinação, fino e alto. Todos os outros
violeiros foram abraçá-los. O cronômetro marcava 190 segundos de aplausos, contra
apenas 90 segundos da dupla
segundo colocada.
No dia seguinte o Trio da Roça estava contratado pela Rádio Difusora, que
naquele
período havia sido comprada pela Tupi, parte de ofensiva do jornalista Assis
Chateaubriand para formar uma poderosa rede de veículos de comunicação - os Diários
e Emissoras Associados. Três meses depois o contrato foi renovado por dois anos e o
salário foi acertado em cruzeiros, a nova moeda que aposentara os réis. Eram 1.200,00
uma fortuna, comparado ao salário mínimo, da época, de 280,00. Já sem o primo Miguel
(hoje aposentado e morando em Santo André, SP),eles eram apenas os irmãos Perez.
Um dia, durante um ensaio do programa Arraial da Curva Torta, o Capitão Furtado -
de batismo Ariovaldo Pires, primo de Cornélio, apresentador do programa e também
lendário divulgador da música sertaneja - disse que uma dupla tão original, com
vozes gêmeas, não poderia ter nome espanhol. Batizou-os, na hora, de Tonico e Tinoco.
A divulgação nos programas da rádio transformava a dupla "Coração do Brasil"
- o slogan também foi coisa do Capitão Furtado - em sucesso imediato, fazendo
surgir dezenas de convites para shows. A primeira apresentação dessas foi no cine
Catumbi, em São Paulo, hoje transformado em uma casa de forró sertanejo. Depois
rumaram para o interior, em excursões que demoravam uma, duas, às vezes, três semanas.
Entravam pelo interior paulista de Taquaritinga, Santa Adélia e seguiam de trem por
toda a linha araraquarense. Na Mogiana, passavam por Brodosqui, Franca e terminavam
em Ribeirão Preto. Apresentavam-se em cinemas, clubes e até em pátios vazios de
armazéns. Quando terminaram a primeira excursão, no Circo Biriba, em Ribeirão Preto,
fizeram a partilha do lucro:
quatro mil e quinhentos cruzeiros para cada um.
Enquanto isso, o clamor por liberdade no país levava a ditadura para sua
fase
final. O Estado Novo de Getúlio Vargas se exauria. Mas o regime autoritário ainda
fazia estragos com sua censura à política e à cultura. Os últimos suspiros do governo
Vargas terminaram ironicamente ajudando a carreira de Tonico e Tinoco. Em 1944,
eles estrearam em disco, com a música Ao invés de me agradecer, um cateretê do
Capitão Furtado, Jaime Martins e Aimoré, para preencher o espaço vazio da música
Salada Internacional, de Palmeira
(Diogo Mulera), que fora vetada pela censura.
O sucesso possibilitou a gravação do primeiro disco 78 rotações deles próprios.
Era Sertão do Laranjinha de um lado e Ao invéis... do outro. Daí em diante,
deslancharam. Gravaram Percorrendo Meu Brasil, de João Merline, Canoeiro, de
Zé Carreiro, Cana Verde, de Tonico e Tinoco. Depois foi Tristeza do Jeca, de
Angelino de Oliveira e a mais famosa delas, Chico Mineiro, de Francisco Ribeiro
e Tonico.
Ao final da Segunda Guerra, o número de emissoras de rádio saltou para 117, e os
aparelhos receptores eram 3 milhões. Tonico e Tinoco estão agora na Rádio Nacional
de São Paulo onde nasceu um de seus mais marcantes programas. Um dia, o auditório
estava ocupado com um ensaio e como eles precisavam entrar no ar, puxaram os
microfones para fora e fizeram a apresentação do corredor. O locutor Odilon Araújo
perguntou de onde o programa estava sendo transmitido e Tinoco respondeu: "Da Beira
da Tuia". O nome ficou.
Com o término da guerra consolidou-se a influência cultural norte-americana em
várias partes do planeta, no Brasil inclusive. As grandes orquestras pontificavam
com o swing e sua versão mais dançável, o fox-trot. A parte brilhante do Brasil
era o Rio de Janeiro, embora a pedra mais vistosa de sua coroa, o cassino da Urca,
já não faiscasse mais, ofuscada pela proibição do jogo, em 1946. Na São Paulo
provinciana ainda havia espaço, via ondas de rádio, para programas sertanejos de
grande prestígio: "Manhã na Roça", de Chico Carretel, na Cruzeiro do Sul; "Brasil
Caboclo" e "Onde Canta o Sabiá", do Capitão Barduíno e Biguá, na Bandeirantes;
"Alma Cabocla" e "Arraial da Curva Torta", do Capitão Furtado, na Difusora. Boas
duplas dividiam a popularidade com Tonico e Tinoco: Moreno e Moreninho, Nenete e
Dorinho, Tião Carreiro e Pardinho, Vieira e Vieirinha - esse último falecido em
agosto do ano passado - e muitas mais. O trabalho era garantido para todos; apenas
em São Paulo estavam baseados 200 circos que iam ao interior para apresentação da
música sertaneja.
A eleição de Juscelino Kubitschek para presidente da República, em 1955,
derrotando
Juarez Távora, Ademar de Barros e Plínio Salgado mostrou, pela primeira vez, o poder
do rádio. Era então já um razoável veículo de comunicação de massa com 480 emissoras
e 4 milhões de aparelhos receptores. A televisão (o primeiro canal, a TV Tupi, fora
inaugurado em 1950) era apenas pouco mais que uma curiosidade, mas prometia ser um
futuro abrigo para a caipirada - já que Tonico e Tinoco participaram da programação
de estréia da Tupi cantando Pé de Ipê. Ledo engano: à popularização da TV coincidiria
um período de virtual banimento da música sertaneja do veículo. Tudo dava certo no
Brasil de Juscelino. A dupla estava sempre com discos novos na praça e até trocara
o trem pelos pequenos aviões Douglas - os lendários DC-3 como meio de transporte,
ampliando o raio de apresentação dos shows para todo o país. O Brasil todo ia ficando
diferente. As colônias das fazendas começam a se esvaziar com o deslocamento da
população rural para as grandes cidades, São Paulo principalmente, onde emprego
não faltava na fase mais intensa
de industrialização do país.
Os anos de vacas gordas duraram pouco. A primeira metade dos anos 60 foi das
mais conturbadas: o governo de Juscelino terminou em meio a insatisfações militares;
Jânio Quadros renunciou sete meses depois de eleito à presidência da República,
abrindo uma crise que culminaria com o golpe militar de 1964. No campo cultural
ocorria um fenômeno curioso: de um lado, a bossa nova começava a dar lugar a uma
música de protesto de cunho altamente nacionalista - de jovens autores que foram
beber inspiração nas manifestações regionais -, embora isso não ajudasse em nada
a musica sertaneja genuína, desengajada politicamente, que foi perdendo espaço nas
rádios e televisões. Para o consumo imediato, o que entusiasmava era a Jovem Guarda
de Roberto Carlos. Além desses motivos, outras coisas contribuíram para fazer desse
período um dos mais difíceis para Tonico e Tinoco. Em 1961, a dupla recebera um golpe
quase mortal quando Tônico, tuberculoso desde 1940, precisou ser internado num
sanatório em Campos do Jordão, cedendo lugar na dupla para o irmão Chiquinho. Quatro
anos e uma cirurgia depois ele deixou o hospital com um péssimo diagnóstico médico:
não havia mais esperanças de voltar a cantar. Sereno e constante, o filho mais velho
da família Perez decidiu resistir, como já fizera no próprio sanatório, onde escreveu
o livro de contos Vila do Riacho baseado em "causos" que ouvia de sua avó Isabel e
organizou um conjunto musical entre os doentes. Muito religioso, ele atribui sua
cura a forças divinas. "Um dia, um homem de barba negra, vestido com um casaco
preto, entrou no meu quarto e garantiu que eu ia ficar bom e voltaria a cantar
melhor do que antes", conta. "Ninguém viu e nem soube quem era o tal homem. Mas
ele lembrava São João Batista."
Quando finalmente Tonico e Tinoco voltam a cantar juntos, encontram outra
barreira
pela frente. Embalados pelo sucesso da Jovem Guarda, os diretores da gravadora
Chantecler - da qual eram contratados - exigiam a "modernização" da dupla,
incluindo aí a troca da viola pela guitarra elétrica. Por não aceitarem a imposição,
ficaram dois anos sem gravar e assistiram a chegada de uma nova safra de violeiros
sem viola como Leo Canhoto e Robertinho e depois Milionário e José Rico -
precursores de futuras duplas como Chitãozinho e Xororó, cuja produção mistura
rancheiras mexicanas, country americano, música de fossa, temperada com vocalização
à maneira sertaneja, mas utilizando apoio maciço de instrumentos eletrônicos. Sem
gravar, Tonico e Tinoco partem para o cinema, como forma de divulgação. Fazem "Lá
no Meu Sertão", "Obrigado a Matar" (baseado na música Chico Mineiro), "Luar do Sertão",
"Marca da Ferradura", "Os Três Justiceiros" e "Menino Jornaleiro" . "O cinema
ajudou que a gente não fosse esquecido pelo nosso público. Em compensação, quase
mata nós", diz Tinoco. É que. a maioria dos filmes foi financiada com dinheiro próprio
da dupla e deu prejuízo
comercial.
simples troca da folhinha não serviu muito para animar a dupla, despertada em 70
para
um país completamente mu dado. Da população - 93 milhões de pessoas - apenas 33°Io
continuam no campo. A industrialização chegara ao seu pico máximo; o mundo rural da
enxada e do carro de boi ficou definitivamente para trás. Há dinheiro farto e barato
para a compra de tratores, adubos, fertilizantes e outros insumos. A soja e a cana -
culturas extensivas, altamente mecanizadas, e que por isso expelem a mão-de-obra
tomam conta e dão o tom na atividade rural. Os boiadeiros vão sendo substituídos
pelos caminhões, e o boi já sai praticamente congelado dos pastos. "Quem colocasse
música sertaneja na programação das rádios durante o dia, podia ser demitido. Era só
música estrangeira invadindo o
país", lamenta Tinoco.
Nem por isso se abalou a resistência, pois a dupla lançou religiosamente um LP
todos
os anos, e foi sobrevivendo com shows pelo interior do país. No final da década, o
vento virou. Em 1979, precisamente no dia 6 de junho, Tonico e Tinoco fazem o que
nenhum caipira havia sonhado: apresentam-se no Teatro Municipal, em São Paulo, num
show de três horas que reúne um público recorde de 2.500 pessoas. Da beira da tuia,
celeiros centenários onde cantavam no passado, os irmãos Perez chegavam a um dos mais
famosos teatros do mundo, que até então só abria suas portas para óperas, balés e
concertos eruditos.
A abertura das portas do vetusto e octogenário Teatro Municipal foi a
manifestação mais visível do agradecimento de São Paulo - uma cidade criada por
imigrantes e migrantes, boa parte desses também caipiras. Mas há um simbolismo
oculto na hornenagem. A década de 80 foi quando o Brasil resolveu olhar com mais
seriedade para dentro de si mesmo. Viu coisas novas. Por exemplo, o início de uma
inversão no fluxo que fez explodir as capitais. O interiorzão, desprezado nos 30
anos anteriores, voltou a ser moda, a ser motivo de orgulho: era onde as coisas
estavam acontecendo, em contraste
com a profunda crise urbana do país.
Nesse quadro, só podia ser o momento de consagração para Tonico e Tinoco,
afinal,
dois artistas que passaram por duas gerações como autênticos guardiões da música
sertaneja autêntica. "É notável que nesses longos os anos eles tenham resistido a
todos os modernismo", diz a radialista Thais de Almeida, estudiosa da cultura caipira
e responsável pelos programas sertanejos "O canto da terra" e "Viola, minha viola", na
Rádio e TV Cultura de São Paulo. "Basearam seu trabalho na folclore popular e isso
impediu o fim da música caipira. " Esse folclore é tão rico que funciona como uma
"matriz genética" - da qual se aproveitou tanto a música erudita de Villas Lobos,
Alberto Nepomuceno e Heckel Tavares quanto a música popular mais elaborada, de
Gilberto Gil, na sua primeira fase, Milton Nascimento, Renato Teixeira, e outros
- como o virtuose popular Almir
Sater.
Hoje, do alto dos seus apartamentos gêmeos, localizados no bairro da Mooca (SP),
onde residem desde os anos 50, Tonico e Tinoco assistem a tudo impassíveis. Sabem
que luz elétrica é melhor que lamparina e que penicilina é mais eficiente do que
reza para curar doenças do corpo. Moda de viola, contudo, tem que ser daquele mesmo
jeito que vem sendo feita por eles há mais de meio século. Até junho de 1991, a
dupla já havia feito 20 espetáculos pelo país e planeja gravar pelo menos 15 discos,
com os sucessos dos 56 anos de carreira. Em outras palavras, a intenção é continuar
na estrada, talvez até mais que outros 56 anos - como brincou o Tonico, no começo
dessa história. Ficarão para sempre do jeito que diz um cateretê que é sucesso da
dupla - de autoria de Chiquinho,
Zé Tapera e Zé Paioça:
"...enquanto o mundo for mundo, e tiver perfume a frô, enquanto existi na
mata
o canário dobrado, enquanto existi o caboclo que escreve verso de amô, enquanto
existi viola, existirá o cantadô..."
Texto retirado da Home Page Oficial dos Violeiros do Brasil