História da Viola
INTRODUÇÃO
A viola, instrumento hoje destinado ao acompanhamento dos lamentos sertanejos e das danças folclóricas portuguesas,
trás consigo séculos de história sendo ela a evolução direta da antiga guitarra de 5 e 6 ordens largamente usada na
Europa e América dos séculos XVI, XVII e XVIII. Foi o principal instrumento do barroco brasileiro e largamente difundida
por toda a Europa setecentista sendo ela tão ( ou mais ) popular quanto o Alaúde em sua época. Tanto foi que sobreviveu
ao tempo e se reinventou. Aqui tenho o objetivo de traçar um paralelo entre a guitarra de 5 e 6 ordens européia e a viola
brasileira, sua origem e sua evolução até o fim do período barroco, principalmente comparando os dois modelos e mostrando
semelhanças e heranças do instrumento europeu que perduraram na viola até os dias atuais.
O INSTRUMENTO
A viola é um instrumento cordofone, da família dos instrumentos de cordas pinçadas. Pode ser encontrada com
diversas denominações: viola, viola caipira, viola sertaneja, viola cabocla, viola brasileira, viola de arame, viola de
10 cordas. Também pode ser encontrada em diversos tipos com características diferentes entre si como a viola paulista,
a caiçara, a nordestina, a angrense, de cocho, de Queluz, de buriti, de cabaça. Instrumento harmônico, capaz de tocar
várias notas ao mesmo tempo e de corpo menor que o violão, possui vários tamanhos de caixas acústicas. Há violas de
caixas pequenas, denominadas de "ponteios" pelos fabricantes como há os modelos "clássicos", de bojo maior, ainda sim,
não tão grande quanto do violão. Estas caixas são feitas geralmente de 2 tipos de madeiras diferentes, sendo uma madeira
mole no tampo ( pinho, abeto, cedro ) e madeira dura nas laterais e fundos ( jacarandá, maple, pau-brasil, caxeta, mogno ).
Possui um braço com casas ou pontos aonde se instalam os trastes que dividem sua escala em semitons. Os braços podem ser
classificados como "regra inteira" quando a escala é colada por cima da parte superior do tampo harmônico, geralmente feita
em jacarandá, pau ferro ou ébano e sua divisão por trastos chega até a 19ª casa e "meia regra", quando a escala vem até o
início da caixa acústica e é mantida na mesma altura do tampo, tendo apenas 12 casas, algumas com 10 casas apenas.
A maioria dos pesquisadores afirmam em suas pesquisas sobre viola que o instrumento possui restritamente 5 ordens de
cordas e que isso seria a característica principal que denomina o instrumento. Dividida em 5 ordens podemos encontrar violas
de 10 cordas, 12 cordas, 7 cordas, 5 cordas, com as seguintes ordenações: a mais comum e mais usual 2 2 2 2 2, a 3 3 2 2 2
usada nas antigas violas de Queluz, 1 1 1 1 1 usada nas violas de cocho mato-grossenses. Não importa o número de cordas,
tem que ser sempre dividida em 5 ordens. Porém faço um parênteses aqui e discordo dessa afirmação. A conceituada fábrica
de instrumentos musicais Giannini fabricou entre as décadas de 20 e 50 um instrumento com 6 pares de cordas ( 6 ordens )
denominada de "viola portugueza". Há dois anúncios sobre este instrumento publicado no site da empresa ( um deles abaixo a
direita, datado de 1950 ) que comprova a existência desse instrumento. Outra prova da existência e utilização das violas de 6
ordens é uma famosa foto da dupla Mandi e Sorocabinha, uma das duplas pioneiras nas gravações em disco de modas de viola
no Brasil, em que eles aparecem com uma 12 cordas "meia regra", talvez uma Giannini ( foto abaixo á esquerda datada de 1929 ).
Provavelmente estas antigas violas de 12 cordas seriam a evolução direta das guitarras de 6 ordens de cordas, último estágio da
evolução do instrumento em cordas duplas, pouco antes do surgimento da guitarra de 6 cordas simples, o "violão romântico"
( ou "viola francesa" como era denominada em um dos anúncios do Almanak Laemmert, datados da década de 1840 ). A guitarra
de 6 pares surgiu por volta da década de 1760 e até 1830 ainda eram fabricadas portanto não é difícil que este instrumento
tenha sido fabricado junto a viola de 5 pares de cordas nos primórdios da industrialização musical no Brasil na virada do século
XIX para o XX. Vou além disso e questiono se seriam os primeiros violões de 12 cordas americanos uma evolução direta dessas
guitarras de 6 ordens, quem sabe irmãos separados da nossa viola de 12 cordas, uma vez que os primeiros exemplares de violões
da Martin, conceituada fabricante de violões nos EUA, datados de 1833 são praticamente "guitarras românticas" tanto no formato
como no diminuto tamanho. Atualmente a viola de 12 cordas, que foi esquecida durante décadas, esta sendo aos poucos resgatada
por músicos como os violeiros Heraldo do Monte, Zeca Collares, pelo luthier e violeiro Luciano Queiroz e pelo violeiro Junior da Violla
( este que vos escreve e que possui duas autênticas violas de 12 cordas feitas sob encomenda pela marca Rozini ).
As fotos acima atestam a existência de violas com 6 pares de cordas, a da esquerda uma foto da dupla Mandi
e Sorocabinha aonde o violeiro Mandi segura em seu colo uma viola de 12 cordas. A direita um anúncio da Giannini
obtido do seu catálogo de produtos de 1950 aonde comprova-se a fabricação de violas de 12 cordas no Brasil.
No vídeo acima podemos ver claramente a viola de 12 cordas usada pelo Mandi
Guitarra de 12 cordas fabricada na Espanha, 1802
Viola de 12 cordas fabricada pela Rozini, 2013
Junior da Violla interpreta o clássico Asturias, de Isac Albeníz em sua viola de 12 cordas fabricada pela Rozini
A EVOLUÇÃO DA GUITARRA Á VIOLA
Poderíamos dizer que a viola iniciou sua jornada com o surgimento de um instrumento chamado guitarra latina, instrumento
que pode ter se originado a partir da entrada de povos mouros e árabes na península ibérica a partir de 711. É certo que a
presença dos árabes e de seus instrumentos na península Ibérica fez com que o lugar se transformasse em um dos grandes
berços dos instrumentos de cordas dedilhadas do planeta, muito em parte por conta do uso ja tradicional do ud árabe, o mais
antigo instrumento de cordas dedilhadas existente. Uma das mais antigas referências a guitarra latina esta no Cancioneiro da
Ajuda, datado de 1280, aonde 8 das 16 figuras do códice aparecem com guitarras em mãos. Outra referência datada de 1330
esta nos versos do Libro de buen amor, obra de Juan Ruiz, arcipreste de Hita que menciona em um de seus versos:
"Rescíbenlo omnes e duenãs con amores,
Con muchos instrumentos salen los atanbores.
Allí sale gritando la guitarra mourisca,
De las voces aguda, de los puntos arisca,
El corpudo laud que tiene punto a la trisca
La guitarra latina con esos se aprisca."
Nestes versos vemos a citação de dois instrumentos muito usados na época: a guitarra mourisca e a guitarra latina. É
desse segundo instrumento que tivemos a evolução para os instrumentos modernos que temos nos dias de hoje como por
exemplo o violão. Hoje não há dúvidas de que a evolução da viola ( assim como do violão ) se inicia de verdade com o surgimento
da guitarra latina. Assim também concorda o pesquisador e violeiro Ivan Vilela e seu livro Cantando a Própria História: Música
Caipira e Enraizamento. Diz em certo trecho:
" Com base no enlace cultural dos mouros, cristãos e judeus sefarditas inúmeros instrumentos foram gestados. A fusão que
se processou nesse período na península Ibérica foi tal que, por volta do século XIII, chegou a guitarra latina".
Ainda sobre a guitarra latina, o pesquisador e escritor Ernesto Veiga Oliveira em seu livro " Instrumentos Musicais Populares
Portugueses", editado em 2000 diz:
"Geiringer (...) considera ( que ) esta guitarra latina de origem arábico-persa ( tenha ) chegado á Europa a seguir ao alaúde,
encontrando-se em Espanha desde o século XII, além disso, na sua forma primitiva, ela possuiria fundo convexo, que só
mais tarde teria sido substituído pelo fundo chato que é um dos seus traços característicos fundamentais. Em qualquer
caso, no século XIII, a guitarra latina prefigura a forma essencial da vihuela ou viola quinhentista, que seria
compreensivelmente o seu prolongamento direto. E a nossa viola actual, que o mesmo é essencialmente que esta viola
quinhentista, teria desse modo como protótipo e longínquo antepassado a guitarra latina do Arcipreste de Hita, ou seja, o
velho instrumento jogralesco do Cancioneiro da Ajuda"
Guitarra latina medieval
Guitarra latina medieval
A palavra "viola" e o direcionamento desse termo a um instrumento de cordas pinçadas aconteceu em algum momento
entre o ano de 1330 e o ano de 1455, data em que encontramos o mais antigo registro do termo viola associado ao
instrumento musical de cordas pinçadas: trata-se de uma carta do rei D. Afonso V, concedendo perdão a um tocador de
viola por um desentendimento havido com as autoridades de Évora, por estar tocando viola em horário inapropriado. Outro
fato curioso desta vez de 1459 trata de uma reclamação dos procuradores da cidade de Ponte de Lima, ás cortes de Lisboa,
enumerando os males que, por causa da viola, se faziam sentir em todo o reino. Eles alegavam que certas pessoas se serviam
da viola para, tocando e cantando, mais facilmente roubarem as casas e dormirem com suas mulheres, filhas e criadas, que
como ouvem tanger a viola, vamlhes desfechar as portas.
O termo "viola", originado do latin fidicula e mais a frente do hispânico vigola, provavelmente é de origem italiana ( ja que
na Espanha usava-se o termo vihuela para o instrumento de 6 ordens de cordas e na França viole ) e foi adotado pelos
portugueses para designar todo e qualquer instrumento de fundo plano e cordas pinçadas, diferente do alaúde de fundo
abaulado. O termo guitarra, usado na Espanha e no resto da Europa para designar o instrumento de 4 ordens de cordas
originou-se do grego kíthára, sendo adotada pelos árabes ( qitâra ) até chegar a terminologia atual ja no século X. Haviam
vários instrumentos musicais denominados de viola, entre eles a viola da mano, viola de arco, viola da gamba, viola da braccio,
viola d'amore. Por essa época o formato da antiga guitarra latina ja havia evoluído para o formato de 8 e assim se manteve ao
longo da história sofrendo apenas um acinturamento mais pronunciado no século XVIII. E ja com o nome de viola, com 4 ordens
de cordas de tripa, podendo ser distribuída em 4 pares ou 3 pares e 1 simples, se transformou em um instrumento imensamente
popular em Portugal, sendo ela a versão "dos menos favorecidos" em relação á vihuela espanhola de 6 ordens, instrumento
palaciano e aristocrático.
Vihuela espanhola de 6 ordens de cordas
Vihuela espanhola de 6 ordens de cordas
Guitarra de 4 ordens de cordas
Guitarra de 4 ordens de cordas
Foi cantada em versos pelos maiores poetas da época como Gil Vicente, na farsa Inês Pereira, apresentada em 1523
ao mui alto e mui poderoso D. João III aonde descreve o afã da protagonista para encontrar marido discreto e de viola:
"que seja homem mal feito
feio, pobre, sem feição,
como tiver discrição,
não lhe quero mais proveito.
E saiba tenger viola,
e coma eu pão e cebola.
Sequer uma cantiguinha!
Discreto, feito em farinha,
Porque isto me degola."
E por Camões na peça Filodemo:
"A viola, Senhor, vem
Sem primas nem derradeiras
Mas sabe que lhe convém?
Se quer, Senhor, tangem bem,
Há de haver mister terceiras"
Outros dois fatos que comprovam a popularidade da viola entre os
portugueses quinhentistas: o primeiro trata-se de uma gravura do primeiro
livro didático ilustrado em português, o Grammatica da lingua portuguesa,
com mandamentos da santa madre igreja, de João de Barros ( 1497-1562 ),
editado em Lisboa em 1539, que estampa a viola em seu "becce de figuras",
ressaltando-a como um dos principais ícones da época. Cabe ressaltar que o
formato do instrumento da imagem é muito semelhante ás guitarras e vihuelas
feitas na época, em formato de 8 mas com a cintura pouco pronunciada, mais
"quadrada". O segundo esta na Crônica de El-Rei D. Sebastião, de Frei Bernardo
da Cruz e de Estevam Ribeiro aonde esta registrado que o Rei levou com ele em
sua expedição o violeiro Lemos de Domingos Madeira para entreter a tripulação
durante a travessia pelo mar. Há também o relato de Philipe de Caverel á
embaixada de Lisboa, em 1582 aonde menciona as "dez mil guiteres" ou violas
encontradas nos despostos do campo de D. Sebastião, na trágica batalha de
Alcácer Quibir.
Embora seja provável que o instrumento tivesse chegado a terras brasileiras
anteriormente, as primeiras citações sobre viola no Brasil só aparecem de fato
nas cartas dos jesuítas, que chegaram por aqui com Tomé de Souza em 1549.
São eles em boa parte ( mais não os únicos ) responsáveis pela introdução das
violas e dos demais instrumentos europeus em terras brasileiras. Não os únicos
pois muitos colonos portugueses também trouxeram violas junto á sua bagagem.
Enquanto se escreviam métodos para Vihuela e Guitarra de 4 ordens como os
famosos "Libro de Música de Vihuela de Mano" de Luys Milan ( Valência, 1536 ),
"Declaração de instrumentos musicais" de Juan Bermudo ( Ossuna, 1549 ) e "Delphin de Música" de Luis de Narváez
( Valladolid, 1538 ), aqui no Brasil o instrumento de 4 ordens era utilizado largamente pelos jesuítas na catequização dos
índios que ja possuíam experiência musical anterior a chegada dos europeus. Um texto escrito pelo padre jesuíta Cristovão
de Gouveia, datado de 1583 diz:
"Fazendo muitos trovados e dançando ao som da viola, pandeiro, tamboril e flauta (...) os padres ensinam os meninos
índios a ler e escrever, e alguns mais hábeis também a contar, cantar e tanger, tudo tomam bem, e há já muitos
que tangem flautas, violas, cravos, e oficiam missas en canto d'órgão, coisas que os pais estimam muito."
A vihuela de 6 ordens era o instrumento do tocador virtuoso, destinado mais a música solista até por conta da sua
maior complexidade frente a guitarra de 4 ordens, mais simples e destinada ao estilo do rasgueado. Curiosamente é este
segundo instrumento com sua forma de tocar que iria dar origem á música flamenca na Espanha e aos vários ritmos
usados no que hoje chamamos de "música caipira". No Brasil a vihuela solista aportou em terras baianas, ja a viola de
4 ordens desceu para o sul vindo a se instalar em terras paulistas. Talvez isso explique o fato da viola nordestina ser mais
destinada ao solo e a viola em território paulista ser mais destinada ao ritmo.
O acréscimo da 5ª ordem na guitarra de 4 ordens, o mi agudo atual, se deu a partir da segunda metade do século XVI
e é atribuída ao padre Vicente Espinel ( 1550 - 1624 ). Amigo de Lope de Vega, foi homenageado no livro La Dototea aonde
um Lope brincalhão põe na boca de uma personagem a seguinte frase:
"Que Deus perdoe a Vicente Espinel, que nos trouxe (...) as cinco cordas da guitarra, com o que se vai esquecendo os
instrumentos nobres"
Uma das consequências do acréscimo da 5ª ordem foi o aumento de tamanho do instrumento. A guitarra de 5 ordens
era ligeiramente maior que a guitarra de 4 ordens. Isso gerava maior tensão das cordas e proporcionou um maior estudo
nos reforços internos do instrumento. Era afinado em la ré sol si mi, a atual afinação do violão, mas sem o bordão mi.
Este instrumento uniu em um único exemplar características tanto da Vihuela de 6 ordens como da guitarra de 4 ordens:
praticidade e facilidade de manuseio. Porém ela não é uma continuação da vihuela, e sim uma evolução direta da guitarra
de 4 ordens. A vihuela seria um desvio, um braço de história independente que mais adiante não teria ligação com nada.
A guitarra de 5 ordens herdou praticas da vihuela como a música dedilhada, a fineza de construção, porém não herdou
seu repertório. Em pouco tempo colocou em desuso tanto sua antecessora de 4 ordens como sua "parente" de 6 ordens
e iniciou um reinado que se não foi maior, pode-se dizer que foi de igual popularidade junto ao alaúde. A grande vantagem
da guitarra de 5 ordens era a facilidade para se tocar pois permitia não só o uso da técnica de ponteio ( cordas pinçadas ),
como de rasgueio. Além disso seu tamanho diminuto facilitava seu transporte para qualquer lugar, o que o alaúde com seu
formato abaulado e dezenas de cordas não permitia de forma tão simples. Isso fez com que o instrumento fosse usado não
somente nos salões palacianos da nobreza como em tabernas e nas casas da plebe européia. O primeiro tratado escrito
para guitarra de 5 ordens foi publicado em 1596 pelo médico e músico amador Juan Carlos Amat.
Guitarra de 5 ordens de cordas
O instrumento se espalhou pela Europa e claro, não poderia deixar de aportar em terras brasileiras. Aqui, assim como
na Europa, também desbancou a viola de 4 ordens e se tornou o instrumento de maior popularidade em nossas terras,
se enraizando em São Paulo e sendo transportada por bandeirantes e tropeiros em lombos de mulas para os rincões do
Brasil, inclusive Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e norte do Paraná. A identificação da viola com os primeiros
habitantes da região de São Paulo mostra o quanto a viola foi um instrumento presente na cultura bandeirante, e mais
adiante tropeira, ao ponto de se firmar como elemento cultural nos espaços aonde andaram e fizeram as bandeiras. São
vários os relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX que relatam a musicalidade dos tropeiros que nas horas de repouso
improvisavam versos ao som de suas violas. A viola se tornou porta-voz desse povo interiorano do Sudeste e Centro-Oeste
brasileiro. E o fato de em todas essas regiões serem encontradas violas de 5 ordens mostra que a expansão da viola pelo
Brasil ja se deu com o modelo seiscentista, e não da viola quinhentista de 4 ordens que aportara no Brasil um século antes.
Na Europa barroca do século XVII surge a figura de Gaspar Sanz. Professor do rei Luís XVI e de uma de suas filhas,
fez sua fama se estender até a corte do rei Carlos II, da Inglaterra. Teve como discípulo Robert de Viseé que após seu
falecimento ocupou o seu posto a serviço do rei Luis XVI. O próprio rei, entusiasta do instrumento estabeleceu o cargo
de maitre de guitare du Roy, mostrando o tamanho da importância que o instrumento ganhou nessa época. Ao italiano
Foscarini atribui-se ter combinado pela primeira vez em um livro técnicas de rasgueado e dedilhado, provando a mescla
de técnicas originária de seus antecessores e que transformou a guitarra em um instrumento extremamente versátil. Além
deste método, mais de uma centena de livros foram escritos para guitarra ao longo dos séculos XVII e XVIII. Infelizmente
nenhum desses métodos chegou ao Brasil, ou se chegou foi nas mãos de algum anônimo ou aventureiro. Aqui se instituiu
a tradição do aprendizado "de pai para filho" e assim foi pelo menos até pouco tempo atrás, antes da viola chegar aos
conservatórios musicais. A viola no Brasil era mais simples e rústica, tanto no tocar, como também em construção,
muitas delas feitas literalmente no canivete, sem adornos, técnicas de luthieria ou requinte.
Com o passar do tempo a viola brasileira começou a ganhar formas próprias como a cintura mais pronunciada mas
algumas características foram mantidas: as cravelhas de madeira, com alguns exemplares exibindo 12 cravelhas, a
escala com 10 casas, no mesmo nível do tampo ( chamada por aqui de "meia-regra" ) e no caso das violas mineiras,
principalmente as violas fabricadas na antiga cidade de Queluz de Minas, uma semelhança muito grande com relação
aos ornamentos e machetarias nelas inseridas com os exemplares de guitarras européias mais trabalhadas, nítida
herança do período barroco vigente na época. Em Portugal foram as violas braguesas que mantiveram as características
da guitarra de 5 ordens. Vamos comparar os modelos nas fotos abaixo:
Guitarra de 5 ordens barroca, século XVII
Viola brasileira modelo Queluz "meia-regra", produzida até início do século XX
Viola brasileira modelo paulista "meia-regra", feita em Tatuí em 1947
Viola braguesa portuguesa
Comparativo entre a guitarra de 5 ordens, as viola brasileira de Queluz e paulista e a viola braguesa portuguesa.
É notável algumas semelhanças como as cravelhas de madeira, escala pequena, geralmente até a 10ª casa
( meia-regra ) e formato em 8, menos acentuado na guitarra de 5 ordens. Também é visível a semelhança na
braguesa e na brasileira na machetaria.
Tanto no Brasil como em Portugal as violas ganharam características distintas quanto a região em que se encontrava:
no Brasil temos a viola paulista, angrense, caiçara, nordestina, de arame e em Portugal a braguesa, a amarantina, beiroa,
campaniça, da madeira, toeira, de arame. Infelizmente o declínio da atividade dos jesuítas no Brasil fez com que houvessem
poucas informações sobre violas nesse período por aqui. Há muitos inventários aonde não é difícil de se encontrar uma viola
entre os pertences contidos nos documentos. O mais antigo inventário data-se de 1613 e o mais curioso de 1688 aonde
consta uma viola avaliada em dois mil réis, uma fortuna para a época, pertencente ao bandeirante Sebastião Paes de Barros.
Também não podemos deixar de citar dois personagens de grandiosa importância para a viola barroca brasileira: Gregório de
Matos ( 1636 - 1696 ) e Domingos Caldas Barbosa ( 1740 - 1800? )
Gregório de Matos, conhecido também como Boca do Inferno, foi o primeiro grande poeta brasileiro e o maior nome da
literatura brasileira do barroco em seus primórdios em terras tupiniquins. É também o mais antigo violeiro de renome do qual
temos notícia. Fabricava ele mesmo suas próprias violas, feitas de cabaça e reza a lenda que era um exímio instrumentista,
suas obras foram criadas e recitadas juntamente com o som da viola.
O poeta e violeiro Domingos Caldas Barbosa, mulato de origem obscura, filho de pai português e mãe escrava, nasceu no
Rio de Janeiro em 1740 ( ou em 1738, segundo Luiz da Câmara Cascudo ) e faleceu em Lisboa em data ignorada, por volta
de 1800. Estudou no colégio dos Jesuítas, revelando desde cedo seus dotes artísticos. Compunha e cantava modinhas e
fazia versos satíricos. Ficou famoso como tocador de viola. Em 1762, o Capitão-General Gomes Freire de Andrade forçou-o,
como castigo, a assentar praça no regimento sediado na Colônia do Sacramento. Quando esta colônia foi ocupada pelos
espanhóis, voltou ao Rio de Janeiro e obteve baixa. Por intermédio do Conde de Pombeiros, transferiu-se para Portugal. Aí,
continuou seus estudos e foi ordenado padre, tornando-se Capelão da Casa da Suplicação. Foi recebido como membro da
Arcádia Lusitana, adotando o nome de Lereno Selenuntino. Ficou extremamente popular no reino, com suas modinhas e
lundus, acompanhado pela sua viola, que apresentava em saraus de casas distintas. Muitas de suas obras apareceram
também no livro Viola de Lereno, editado em Lisboa.
A viola brasileira do século XVIII era o instrumento preferido do cantador, do modinheiro. Era a época das modinhas,
gênero de popularidade imensa, o primeiro gênero musical nascido no Brasil que chegou á Europa aonde fez grande sucesso,
principalmente na corte portuguesa. Traziam raízes do cantar português fundido ao bel canto italiano e á ja presente riqueza
melódica brasileira. Muitos poetas barrocos escreviam versos que nada mais eram do que letras de modinhas. Tomás Antônio
Gonzaga, inconfidente mineiro e autor do livro "Marília de Dirceu" compôs várias modinhas como "Arde-me o velho barril" e
"A estas horas eu procurava" tendo a viola como o instrumento de harmonia. Era uma viola virtuosa, bem trabalhada, com
frases rápidas e harmoniosas e na grande maioria dos casos destinada ao acompanhamento do canto. Por curiosidade há no
youtube uma gravação dessas músicas com a violeira Gisele Nogueira ( especialista na viola setecentista ) acompanhada do
renomado violonista Edelton Gloeden. Alguns musicólogos defendem a idéia de que a viola foi utilizada como contínuo no período
que conhecemos por Barroco Brasileiro. Na falta do cravo como instrumento acompanhador, utilizava-se a viola, ja em cordas
de arame, da mesma forma que na Europa se utilizava a teorba para a mesma função. Outros musicólogos refutam essa hipótese
pela falta de fontes primárias documentando tal prática.
Gravação de programa de TV com o Anna Maria Keifer Trio aonde podemos ver a participação da violeira
Gisele Nogueira que usa uma viola de 12 cordas distribuída em 5 ordens ( 3 3 2 2 2 ). Esta era a forma
como a viola era executada em fins do século XVIII
O primeiro método a citar o uso de cordas metálicas na viola data de 1789,
chamado Nova arte da viola, que ensina a tocalla com fundamento sem mestre
de Manoel da Paixão Ribeiro, editado em Portugal, porém antes disso ja havia
descrição do uso de cordas metálicas, principalmente no Brasil, como atesta o
inventário do luthier ( violeiro, como eram chamados construtores de viola no
século XVIII ) Domingos Ferreira ( 1709 - 1771 ), residente na antiga Vila Rica
( hoje Ouro Preto ), Minas Gerais.
O inventário de Domingos Ferreira, documento descoberto há uma década
pela historiadora Maria José Serro de Souza, trata de uma partilha de bens,
mas que pode ser considerado o mais importante documento de registro sobre
a viola setecentista brasileira ja encontrado. O documento mostra com grande
minúcia como era o ofício do construtor de violas no século XVIII. Mostra também
que a música profana era muito mais difundida do que se imaginava anteriormente
em comparação á música sacra. Era uma música mais intimista, principalmente
aquela executada em ambientes mais sociais, familiares, mesmo entre amigos.
Palco ideal para a viola, um instrumento de som pequeno e que não se alinhava
em nenhuma formação orquestral por pura falta de potência sonora. Domingos
Ferreira produziu centenas de violas, descantes e machetes e provavelmente
não era o único luthier da região. Uma das informações mais bacanas que este
documento nos fornece diz respeito as madeiras e cordas utilizadas nas violas
setecentistas. No caso do tampo o luthier Domingos Ferreira importava os chamados "Tampos de Veneza", oriundos das cidades
de Veneza, Flandes e Hamburgo. Um texto datado de 1796 e atribuído a Antônio da Silva Leite diz:
“A madeira da sua construção deve ser de plátano muito seca, isto se entende não o tampo, porque este deve ser de
Veneza, por ser madeira mais leve; e sendo ela de veia fina e rija, muito melhor, porque o som das cordas reflete mais,
e faz um excelente efeito, estando o bojo ou cabaço bem coligado, e de tal sorte unido que nele não haja buraco ou
frincha por onde lhe entre o ar.”
Para as laterais e fundos eram utilizados jacarandá ou cedro, cedro vermelho ou pau de mangue e eram compradas
por aqui mesmo, sendo estas mais baratas. Com relação ás cordas o inventário surpreende. O luthier encomendava
cordas de tripa lisas e bordões enrolados com fios de prata, curiosamente de igual semelhança aos encontrados hoje
em dia. As cordas vinham da Europa, geralmente de Lisboa ou de Porto e eram muito caras. Chegava ao caso de um
maço de cordas de tripa serem compradas quase pelo mesmo preço com qual era vendida a viola pronta. As cordas lisas
eram feitas de tripa de carneiro. A provável não-utilização do arame por Domingos Ferreira é interessante por indicar uma
prática anterior a essa tendência ja que na segunda metade do século XVII as cordas de metal ja eram largamente
difundidas. Por outro lado, a utilização da tripa tornava necessário o uso de bordões reforçados com fios de prata, como
esclarece um texto de Ernesto Vieira (1899):
“As cordas sonoras empregadas nos instrmentos musicais são feitas de aço, de
latão ou com intestinos de carneiro; a
estas últimas dá-se usualmente o nome de cordas de tripa. As cordas de aço são empregadas no piano, saltério, cítara,
bandolim, guitarra portuguesa e viola chula; [...]”
“Para obter uma corda de considerável grossura sem prejuízo na elasticidade, enrola-se-lhe em espiral um fio de cobre e
algumas vezes de prata; às cordas assim cobertas de fio dá-se o nome de bordões. Os bordões da harpa, viola francesa e
da cítara são compostos de uma madeixa de fios de seda coberta com um fio de cobre prateado. Nos outros instrumentos
a corda principal dos bordões é feita da mesma matéria que as cordas simples.”
Manuel da Paixão Ribeiro no método "Nova arte da viola, que ensina a tocalla com fundamento sem mestre" ja citado
anteriormente indicava duas maneiras de encordoar a viola: a primeira “com cordas de tripa, chamadas vulgarmente de viola”
e a segunda “de arame ou prata”. As de tripa deviam ser bem escolhidas pelo comprador, para distinguir-se as “verdadeiras”
das “falsas”, o que não era necessário no caso das cordas de arame, “porque todas são boas”. As de tripa possuíam menor
duração e maiores problemas de conservação, pois “devem conservar-se em uma lata ou bexiga de boi, untadas com óleo
comum, e as de 19 arame embrulhadas em papel pardo que não seja áspero, por conta de não alcançarem ferrugem.” Quanto
ao encordoamento com tripa, Paixão Ribeiro indica a utilização de bordões de prata na quarta (contras ou requintas) e quinta
ordem (baixos ou cimeiras), informando que a melhor maneira de encordoar uma viola era começar com as terceiras (toeiras),
em seguida os baixos (menos grossas que as terceiras), depois as segundas (menos grossas que os baixos), as contras
(menos grossas que as segundas) e, finalmente, as primas (as mais delgadas de todas). Somente depois disso eram instalados
os bordões - que poderiam ser revestidos com prata - aos
baixos (bordão delgado) e às contras ou requintas
(grosso como das terceiras, porém mais delgado que o bordão dos baixos).
Quanto aos valores atribuídos aos instrumentos, na relação de bens móveis, estes são quase sempre menores
que os valores reais de compra ou venda observados nos comprovantes anexos ao processo, especialmente aqueles vendidos
por Antônio Angola ( criado de Domingos Ferreira ) até 17 de abril de 1777. De acordo com a relação dos bens móveis do luthier,
a viola grande ou ordinária valia entre 3$300 e 4$800 réis, sendo que, desse preço, 1$800 correspondia ao material e ao trabalho
para “encordoar e aparelhar”. Afinal, o maço de cordas de tripa para encordoá-las valia entre 3$300 e 1$800 réis, e apenas um
bordão coberto de prata custava entre $75 e $106 réis. Dentre os outros componentes, o tampo de Veneza usado em cada viola
valia entre $471 e $447 réis e o par de costilhas $187 réis. A meia viola encordoada valia entre 2$000 e 2$100 réis, mas somente
o encordoamento custava $600 réis. O descante ( espécie de viola de tamanho bem menor ) valia, em média (grande ou pequeno,
encordoado ou com cordas quebradas), entre $870 e 1$054 réis, enquanto o machinho ( cavaquinho ) de quatro cordas valia em
média (grande ou pequeno, encordoado ou não), entre $300 e $330 réis.
Na Itália o instrumento ganhou o nome de chitarra battente, manteve até os dias de hoje o desenho da guitarra de 5 ordens
espanhola do século XVII porém se difere por ser encordoada em aço. Outra similaridade com a versão espanhola são os pares
de cordas serem em uníssono, diferente das violas portuguesas e brasileiras que adotaram dois ou três pares em uníssono e
o restante dos pares oitavados. Atualmente é comum encontrar exemplares com tarrachas blindadas atuais e escala por cima
do tampo como no violão moderno. Se tornou instrumento típico das regiões da Calábria, Puglia, Brasilicata, Abruzzo, Molise e
Campania, é usado em ritmos e danças típicas da região como a tarantella, os beliscões, e os estorninhos. Ja estava no centro
e no sul da Itália no século XVI. É também conhecida por "guitarra italiana". A afinação é a mesma usada na guitarra de 5 ordens
espanhola ( ADGBE do grave para o agudo ).
Chitarra Battente italiana
Francesco Loccisano, virtuose da chitarra battente
Outra importante citação sobre a viola no Brasil em fins do século XVIII faz menção sobre o curso de música ministrado pelo
padre José Maurício que teve início em 1793 na Rua das Marrecas, Rio de Janeiro e durou até 1830. Tinha por objetivo preparar
pessoal necessário á sua futura atividade de mestre de capela. Ali se formavam os conjuntos que se apresentavam na Sé. O
material de ensino era de extrema modéstia: o único instrumento disponível aos alunos era uma simples viola de arame. No final
das contas este curso ganhou aos poucos um significado que não pode se deixar passar em branco: pelas cordas metálicas
daquela viola de arame passaram quase todas as pessoas que na época se destacaram na vida musical do país. Entre eles
Francisco Manuel da Silva, autor do hino nacional, que teve sua iniciação ás regras de harmonia ao som dos acordes daquela viola.
Após o auge do século XVIII, na Europa a antiga guitarra de 5 ordens foi substituída pela de 6 ordens, dessa vez a ordem
acrescentada foi o bordão, o par mais grave. A afinação chega finalmente a usada atualmente: mi la ré sol si mi do grave
para o agudo. O mais antigo registro desse instrumento data de 1760 e vem através de um anúncio de venda de
instrumentos na Casa Granadino, na Calle de Atocha, em Madri. O granadino se chamava Joseph Contreras. O primeiro
método para a guitarra de 6 ordens foi escrito pelo gaditano Juan Antonio de Vargas y Guzmán, o Explicación de la
guitarra ( 1773 ), seguido pelo italiano Federico Moretti em Principios para tocar la guitarra de seis órdenes ( 1792 ).
Em 1799 são publicados na Espanha mais três métodos: Escuela para tocar con perfección la guitarra de cinco y seis
órdenes, do português Antônio Abreu, Arte, reglas y escalas armónicas para aprehender a templar y puntear la guitarra
espanõla de seis órdenes según el estilo moderno, de Juan Manuel Garcia Rubio e Arte de tocar la guitarra espanõla por
música de Fernando Ferandiere. No Brasil provavelmente este instrumento também chegou, o que talvez se explique a
existência de violas de 6 pares de cordas construídas por aqui na primeira metade do século XX. Mas esta não durou muito,
com o avanço do século XIX o violino e o pianoforte se adaptavam melhor ás novas formas musicais dos novos tempos e
assim a guitarra entrou em decadência. Logo surgiria uma variação mais simplificada da guitarra de 6 ordens, agora com 6
cordas simples, que ganhou a denominação de guitarra espanhola na Europa e em primeiro momento, de viola francesa
no Brasil. Era o surgimento do violão, que ainda não adquirira o tamanho atual, mas que veio com força suficiente para,
empurrar a viola brasileira para locais aonde o novo instrumento não possuia penetração: o sertão brasileiro. Durante um
século, mais precisamente entre 1830 e 1930 a viola ficou confinada á cultura interiorana brasileira, se tornando o instrumento
preferido do caipira e o acompanhando nos fandangos, festas de reis, folias e congados. Curioso que muitas das danças
herdadas pelos caipiras tinham muito das antigas danças aristocráticas de outrora, muitas delas acompanhadas pelo som
das guitarras de 5 ordens.
Guitarra de 6 ordens
Guitarra de 6 ordens
Guitarra espanhola, também conhecida na época no Brasil como "viola francesa"
Guitarra espanhola, também conhecida na época no Brasil como "viola francesa"
Um violeiro em foto datada de 1860 e uma viola feita provavelmente na década de 1840
Diferente do que aconteceu em Portugal em que a viola se manteve na música folclórica, nas danças, e no restante da
Europa aonde ainda denominada como guitarra ( hoje usa-se a denominação de guitarra barroca ) se usa exclusivamente
para repertório de época, no Brasil a viola só viria a ser resgatada de sua hibernação a partir de 1929 com a chegada da
música caipira ao disco e ás rádios das capitais graças a iniciativa do folclorista Cornélio Pires, que pagou do próprio bolso
a prensagem de 25 mil discos com modas caipiras. Porém infelizmente a viola veio impregnada de preconceito por ser vista
como um instrumento arcaico, antigo, ultrapassado, fora de moda, de gente inculta. A partir daí lentamente houve uma
retomada do instrumento que ganhou ares modernos, se aproveitando da evolução de seu irmão mais novo, o violão. Hoje
a viola não mais resiste e sim vive e goza de plena popularidade como um instrumento que cresce e evolui para além das
fronteiras da música caipira. Técnicas muito evoluídas, construção elaborada ( com microafinação, compensação de afinação,
madeiras nobres ) e repertório variado que vai do jazz ao rock, da música erudita á MPB a transformaram em um instrumento
de possibilidades ímpares não devendo nada a instrumentos "mais nobres" ou mais populares historicamente.
"Jorginho do Sertão", moda de viola gravada pela dupla Mariano e Caçula foi a primeira gravação de música
caipira da história, em 1929
Tião Carreiro, á direita no vídeo, ao lado de seu parceiro Pardinho foi o primeiro violeiro a levar a viola ao
virtuosismo extremo. Da viola de Tião Carreiro nasceu o PAGODE, ritmo frenético e de muito balanço que pode
ser apreciado nesse vídeo
Foi nas mãos de um violeiro de Montes Claros, Minas Gerais, chamado José Dias Nunes ( 1934 - 1993 ), conhecido por
Tião Carreiro que a viola passou por uma verdadeira revolução. Tião Carreiro criou novas sonoridades para o instrumento
explorando novas técnicas e novas abordagens. Foi o criador de um ritmo de extremo virtuosismo chamado "pagode". Tão
grande foi como violeiro que influenciou praticamente todos os que vieram após a sua passagem. Outro grande violeiro foi
Renato Andrade, o primeiro violeiro brasileiro pós 1930 que tocou em palcos da Europa. Também foi pioneiro em se colocar
como solista junto a orquestras com a viola. Com Renato Andrade a viola chega nas salas de concertos do Brasil e do mundo.
No final dos anos 60 e anos 70 a viola finalmente rompe a barreira da música caipira. Em 1962 o compositor Theodoro
Nogueira compôs 6 prelúdios para viola, sendo esta a primeira obra escrita por um compositor erudito para a viola "brasileira"
( entenda como viola brasileira a viola utilizada em território brasileiro ). Em 1963 Theodoro compôs o 7º prelúdio. Estas obras
foram gravadas em 1964 pelo violonista Antonio Carlos Barbosa Lima que assumiu a viola para estas gravações pioneiras no
universo erudito. Jair Rodrigues vence o Festival da Música Brasileira de 1966 com a música Disparada acompanhado da viola
de Heraldo do Monte e do Quarteto Novo. Em 1971 o violonista Geraldo Ribeiro grava um inusitado disco de peças de Bach
transcritas para viola por Theodoro Nogueira. Nos anos 70 a viola ganha força com bandas como Quinteto Violado, O Terço,
Boca Livre, Banda de Pau e Corda. Foi no final da década de 70 que surge um jovem violeiro mato-grossense chamado Almir
Sater. Ele foi o violeiro que melhor traduziu a viola para a MPB, uma viola virtuosa mas sem perder a referência e os toques
já tão enraizados em seu som. Em 1983 o violeiro Roberto Corrêa escreve o primeiro método para viola "brasileira", ja
tinhamos métodos muito simples como o feito pela dupla Tonico e Tinoco em 1977 mas que se restringiam a apenas um simples
dicionário de acordes. No método do violeiro Roberto Correa pela primeira vez se sistematizava os ponteios e técnicas dos
violeiros.
Em 2001 é lançado o álbum de estréia da banda Matuto Moderno, banda que junto com seu violeiro Ricardo Vignini
levou a viola de forma nunca antes feita ao universo do rock. Pela primeira vez de forma efetiva a viola utilizava-se de efeitos
geralmente utilizados em guitarras como pedais de chorus, delays, flanger e até mesmo distorção. Para esta função Ricardo
Vignini desenvolveu junto do luthier Márcio Benedetti uma viola inteiramente maciça. A Giannini já fabricava violas com esta
configuração na época, mas neste caso a captação utilizada era a captação piezo, comum em instrumentos acústicos. A viola
de Benedetti se utilizava de captadores geralmente utilizados em guitarras, como o Lace Sensor da Fender, conseguindo assim
ampliar de forma considerável as possibilidades timbrísticas do instrumento. O primeiro violeiro que se tem notícia de se utilizar
desses recursos tecnológicos para a surpresa ( e contrariedade de alguns violeiros mais ortodoxos ) foi Tião Carreiro. Ele se
utilizou do efeito de chorus na introdução da música "Navalha na Carne" gravada em 1982 e por incrível que pareça, distorção
na introdução da música "Cerne de Aroeira", gravada em 1979. O ápice dessa vertente se deu em 2013 com o lançamento
do álbum de estréia da banda Mano Sinistra, tendo Vignini no comando das violas do disco. Cabe ressaltar também o álbum
"Vai Ouvindo" gravado pelo violeiro Paulo Freire em 2004, em formato de power trio ( viola, baixo e bateria ) aonde a viola
também foi utilizada com distorções.
A viola com sua passagem pela música caipira ganhou sotaque, ganhou voz própria e apesar de toda a modernidade ao
qual ela esta sendo exposta a regra e consenso entre todos os violeiros "de vanguarda" é mantê-la. A viola esta aos poucos
deixando de ser um instrumento arcaico e se transformando nas mãos de jovens músicos como Fernando Sodré que tem um
belo trabalho de jazz e música brasileira, Ricardo Vignini das bandas de rock Matuto Moderno e Mano Sinistra que utiliza uma
viola toda maciça feita pelo luthier Márcio Benedetti com modernos efeitos geralmente utilizados em guitarra, Roberto Corrêa
que se destaca no gênero erudito, Almir Sater na MPB entre muitos outros.
Viola brasileira 5 pares de cordas atual
Violeiro Almir Sater tocando uma viola brasileira de 5 pares de cordas
Viola maciça elétrica construída pelo luthier Márcio Benedetti, 2003
Violeiro Ricardo Vignini á esquerda no vídeo tocando uma viola maciça elétrica
CONCLUSÃO
A viola brasileira é por excelência e direito a herdeira da antiga guitarra de 5 ordens barroca. Através da viola mantém-se
vivo um dos mais fascinantes instrumentos de cordas do período barroco e nela somos capazes não só de fazer música moderna
como também somos capazes de resgatar sua história e seu repertório. Sobrevivente que manteve-se com as mesmas
características de outrora, sofrendo apenas a evolução estética e técnica que os mais de 300 anos o impuseram transformou-se
em um dos mais belos instrumentos de cordas existente. Nem o Alaúde, instrumento com tanta popularidade na época gozou da
mesma evolução e "sorte", hoje é um instrumento considerado "de época". O futuro da viola ainda nos reserva grandes surpresas
pois como diz o pesquisador e violeiro Roberto Corrêa, a viola vive hoje um momento semelhante ao vivido pelo violão 100 anos atrás,
com a formação de repertório, técnica e superando o velho preconceito que a impregnava após a longa reclusão de quase um século
nos confins do sertão.
BIBLIOGRAFIA
1) VIOLÃO E IDENTIDADE NACIONAL, Marcia Taborda, Ed. Civilização Brasileira, 2011
2) A MODA É VIOLA - Ensaio do Cantar Caipira, Romildo Sant'Anna, Editora Unimar, 2000
3) DOMINGOS FERREIRA - Um violeiro português em Vila Rica, Paulo Castagna, Maria José Ferro de Souza, Maria Tereza
Gonçalves de Souza, 2012
4) CANTANDO A PRÓPRIA HISTÓRIA - Música Caipira e Enraizamento, Ivan Vilela, Editora Edusp, 2013
5) EARLY ROMANTIC GUITAR: Gallery of Dated Instruments - http://www.earlyromanticguitar.com/erg/gallery.htm
6) MODA INVIOLADA: Uma História da Música Caipira, Walter de Souza, Editora Quironlivros, 2005
7) MÚSICA CAIPIRA: Da Roça ao Rodeio, Rosa Nepomuceno, Editora 34, 1999
8) A ARTE DE PONTEAR VIOLA, Roberto Corrêa, Editora Viola Corrêa, 2000
9) VIOLÃO IBÉRICO, Carlos Galilea, Trem Mineiro Produções Artísticas, 2012